Em janeiro de 2020, numa paragem de autocarro no concelho de Amadora, Cláudia Simões foi selvaticamente agredida em frente à sua filha menor pelo agente da PSP, Carlos Canha. As agressões continuaram dentro de um carro-patrulha com insultos racistas contando com a cumplicidade dos agentes João Gouveia e Fernando Rodrigues.
Os agentes agressores beneficiaram do apoio corporativista dos sindicatos da polícia e do beneplácito da sua própria hierarquia. O então diretor da PSP, Magina da Silva, mesmo perante imagens que revelavam o agente Carlos Canha sentado em cima do corpo da vítima e ferimentos evidentes na face de Cláudia Simões, vem a público desmentir o uso desproporcional de violência e declarar não ter visto “nada de anormal” na sua detenção. Este apoio de que Carlos Canha e os seus colegas beneficiaram prova que a força do racismo estrutural está nas instituições.
Após quatro longos anos de espera na angústia, ansiedade e dor, a justiça portuguesa resolveu sancionar a vítima e poupar os carrascos. Neste julgamento, o sistema tomou um lado e duplicou a força da violência e racismo institucional a que Cláudia Simões foi sujeita, naturalizou e legitimou as práticas de violência racistas das forças policiais e, assim, voltou a desproteger e, pior ainda, a sancionar mais uma das suas vítimas. Se o direito restituísse sempre justiça, serviria para reparar os danos provocados à vítima e aplicar as devidas e proporcionais consequências ao agente agressor e aos seus cúmplices, que teriam sido os pesadamente condenados por terem gratuita e barbaramente agredido a cidadã Cláudia Simões. Se as instituições da República fossem sensíveis à ideia de igualdade plena e de justiça racial, Cláudia Simões teria sido cuidada e amparada pelo Estado em vez de ver todas as dolorosas sessões do seu julgamento serem transformadas num tribunal dos horrores, onde ela foi sistematicamente achincalhada, humilhada e discriminada e psicologicamente violento.
Pelo contrário, Cláudia Simões é mulher, negra e de condição social modesta e o racismo e a impunidade parecem continuar a grassar dentro das forças de segurança, nomeadamente na PSP, sobautorização dos tribunais. Em sala de audiência, o racismo esteve sempre presente na violência psicológica, humilhação, difamação e inomináveis pressões que a procuradora da república, os juízes e advogados dos agentes agressores exerceram sobre Cláudia Simões e as suas testemunhas. De facto, juízes, procuradora da república e advogados dos agentes da PSP orquestraram e colaboram num exercício de absoluta desumanização de Cláudia Simões.
Todo o julgamento foi um exercício de tortura psicológica e moral contra Cláudia Simões. Um inaceitável e revoltante festival de indignidades vexatórias, com chacotas sobre a queda de cabelos da vítima, repetidas exigências de retirada da peruca em plena sala, correções ofensivas à forma desta se sentar e insinuações difamatórias sobre a mitomania e oportunismo da vítima.
Ao longo do julgamento, os juízes, o ministério público e os advogados dos agentes reafirmaram insistentemente que não estavam a julgar um crime de racismo. Porém, não deixaram de julgar o antirracismo. Na leitura da sentença, voltou a juíza a atacar o movimento antirracista e as e os intelectuais que tiveram a coragem de denunciar a violência racista das agressões à Cláudia Simões e de apoiá-la.
Face ao cenário a que se assistiu desde o início do caso, a expectativa de que perante um agente policial racista se viesse a fazer justiça por uma pessoa negra, mormente uma mulher negra, era quase nula. Porém, o que não se esperava era que o próprio tribunal se transformasse numa amplificação tão persistente da violência racial como se viu acontecer até ao fim do julgamento.
A condenação de Cláudia Simões é a prova de que a justiça em Portugal tem cor e que o racismo goza de proteção institucional. Este veredito normaliza a violência policial racista.
O SOS Racismo lamenta que, mais uma vez, a justiça tenha escolhido premiar a impunidade e legitimar a violência policial racista.
O SOS Racismo manifesta a sua total solidariedade com Cláudia Simões e mostra-se totalmente disponível para estar ao seu lado para prosseguir a luta no sentido de reverter esta inaceitável sentença.
O SOS Racismo condena a tentativa de silenciamento do movimento antirracista e de intimidação a ativistas e académicos que se mobilizam na luta contra o racismo e inerente violência.
O SOS Racismo mantém-se empenhado em denunciar e combater a cada vez mais preocupante porosidade entre expressões do racismo e práticas de justiça.
1 de julho de 2024
SOS Racismo