Linguagem inclusiva – uma das respostas necessárias à violência e à censura

No passado dia 22 de Setembro, numa livraria em Lisboa, foi apresentado o livro infantil “No meu bairro”, escrito por Lúcia Vicente e ilustrado por Tiago M. Trata-se de uma obra que inclui 12 histórias de ficção em rima, em que as protagonistas são as crianças que falam sobre a sua vida, sobre racismo, identidade de género, religião, bullying e ativismo. É também provavelmente o primeiro livro infantil publicado em Portugal a usar a linguagem neutra baseada no Sistema ELU. O lançamento desta obra, merece por estes motivos desde logo o interesse e apoio do SOS Racismo. Infelizmente os factos que se desenrolaram no seu lançamento merecem lamentavelmente o nosso mais enérgico repúdio e tomada de posição.

Relatos da própria escritora, ilustrador e de outras pessoas na assistência, descreveram a presença de uma dezena de pessoas que durante a apresentação do livro desencadearam um protesto que culminou no boicote à apresentação em si, quando um dos protestantes munido de megafone impediu a sua continuidade. Não se tratou de um debate de ideias, tratou-se da invasão do evento com uma postura intimidatória. Os protestantes em nenhum momento se mostraram disponíveis a conversar pacificamente, racionalizar ideias e muito menos a abrir espaço para a empatia pelos outros. Ficou óbvia a sua postura ao filmarem tudo o que ocorreu e tentarem silenciar os autores da iniciativa com o megafone em riste. A resistência a sair do local foi também evidente, já depois da insistência dos organizadores e responsáveis da livraria e assistência, só sendo possível após a intervenção da polícia PSP, que identificou os protestantes. A autora do livro considerou ainda apresentar queixa no Ministério Público.

Antes e após esta iniciativa, somaram-se outros comentários à iniciativa, apresentados nas redes sociais, e que expressavam bem a narrativa de violência e intolerância contra a linguagem inclusiva. Sob o jugo do perigo das ideias, da contaminação do espaço público, da educação e da cultura e pela imposição do pensamento heteronormativo, estes comentários insistem em inspirar o medo e apreensão face ao outro, à diversidade, alimentando antes uma cultura de violência e de silenciamento. Mais uma vez assiste-se a comparar o incomparável, a alegar liberdade de expressão quando o que praticam é a opressão.

A linguagem inclusiva vem sendo uma das ferramentas essenciais do longo processo de combate à discriminação de género, racista, capacitista e de outras formas de discriminação. O SOS Racismo apoia iniciativas como a dos autores do livro “No meu bairro” como caminho para a construção de uma sociedade de iguais para iguais. O SOS Racismo repudia também de forma veemente o protesto ocorrido, a violência que concretizou e que representa. E sublinha, estar com a linguagem inclusiva não é só estar pela liberdade de expressão, mas sim existir/resistir sobre a violência e censura impostas pelos que insistem em alimentar a desigualdade e exclusão da nossa vida colectiva. Tiago M, ilustrador do livro “No meu bairro”, conclui, face ao ocorrido “a necessidade para continuar a abrir caminho para o amor e para a tolerância é óbvia e aqui estaremos para continuar a fazê-lo”.

26 de Setembro de 2023

Declaração de Mamadou Ba nas alegações finais do julgamento que o opõe ao neo-nazi Mário Machado.

Meritíssima, 

Não fosse eu sentindo durante este julgamento uma incompreensível insistência em restringir senão mesmo diminuir o significado e alcance da pronúncia do supremo tribunal relativamente à responsabilidade coletiva de todos quantos participaram na “caça ao preto” na noite de 10 de junho de 1995, em que Alcindo Monteiro foi barbaramente assassinado, nada mais teria eu a acrescentar ao que disse na primeira audiência. 

E mais ainda, fiquei profundamente indignado com a desconexão e, sobretudo a surpreendente desvalorização do entendimento consolidado que existe na sociedade portuguesa de que o militante neonazi, Mário Machado teve um papel central na promoção da violência política que esteve na origem da morte de Alcindo Monteiro e ainda continua a ter no contexto atual. Certamente que o ministério público e a defesa do Mário Machado não podem ignorar que este sentimento é real e é baseado na imagem que o próprio Mário Machado procura insistentemente projetar publicamente. Ele assume-se como um combatente nacionalista, orgulhosamente filiado ao supremacismo nazi, como aqui repetiu o próprio em tribunal e a sua ex-companheira e camarada hammerskin também confirmou. A afirmação desta filiação à ideologia da morte o responsabiliza inequivocamente para as consequências da promoção desta ideologia. Daí que me mantenho convictamente vinculado à ideia de que a responsabilidade coletiva de uma ação política é imprescritível, independentemente da moldura jurídica que enquadra o seu juízo.

Aliás, se o juiz Carlos Alexandre que sustentou em sede de instrução a pretensa difamação aqui em julgamento, admitisse para o criminoso neo-nazi, Mário Machado, o mesmo que admitiu com os seus comparsas do crime, os Hells Angels, ao dizer que: 

a)“este conjunto de elementos assim agrupados não é um simples clube recreativo ‘motard’, mas um conjunto de pessoas que se organizam em moldes paramilitares ou semelhantes ao modo de atuação de uma milícia”; 

b)“Qualquer pessoa pode ser ‘motard’ ou não (…) mas para se fazer parte desta associação tem de se obedecer aos estatutos, o que implica obedecer às decisões do ‘chapter’ ou ‘charter’, o que for, e mesmo que isso inclua, pasme-se, agressões/castigos (…) dos quais ninguém está a salvo.” 

Foi exatamente nos mesmos termos que o acórdão do Supremo Tribunal analisou a atuação grupal no dia 10 de junho de 1995 em que Mário Machado, com o seu taco de basebol que deixou várias pessoas inanimadas, desempenhou um papel central no festival de horrores e violência.

É por isso que violentam a minha consciência e agridem a minha ética as várias tentativas, aqui durante o julgamento, de desconectar e afastar qualquer responsabilidade do militante neonazi às ações que conduziram ao espancamento de pessoas negras, em que acabaria Alcindo por ser morto, apenas por ser negro. 

Constituem para mim uma insuportável violência todos os esforços de absolvição de alguém que, não só nunca demonstrou nenhum arrependimento por ter participado numa caça ao preto que resultou no assassinato de um homem negro, como ainda se vangloria publicamente sempre que pode de ter participado nessa caçada. 

Mário Machado nunca abandonou a sua ideologia mortífera e continuou até hoje empenhadíssimo na sua atividade política criminosa que só por milagre não resulta em mortes, como aconteceu com Alcindo. Quantas vezes, no âmbito das suas atividades criminosas, foi Mário Machado condenado em cúmulo jurídico por crimes vários, quase todos envolvendo violência física extrema que poderia resultar em morte? Que honra tem alguém que nunca se preocupou com a salvaguarda da integridade física e da dignidade humana das suas vítimas? Que bom nome tem alguém a defender que continua a praticar atos social, moralmente e eticamente censuráveis? Como pode um tribunal honrar alguém que desonra o Estado de Direito ao sistematicamente atentar à dignidade humana, fazendo da prática da discriminação racial um modo de vida? Efetivamente, como bem se sublinha no acórdão do supremo tribunal, para além de nunca ter demonstrado nenhum arrependimento no seu envolvimento na violência grupal que ceifou a vida de Alcindo e deixou mazelas insuperáveis às outras vítimas, Mário Machado continua filiado e ativo na defesa de uma ideologia da morte, o nazismo.

Na verdade, fosse este julgamento sobre honradez e bom nome, teria do próprio advogado do neo-nazi requerer a extração de certidão de denuncia de difamação contra a própria mãe que disse nesse tribunal que não seria a primeira vez que o filho fosse tratado por assassino! 

Para além de um insulto à memoria de quem morreu por violência racial e uma ofensa à dignidade de quem sofreu e sofre todos os dias da violência racista, é fundamentalmente um atentado à própria democracia qualquer possibilidade de reabilitar alguém que cultiva, pratica, propaga e mobiliza o ódio, vangloriando-se sistematicamente disso no espaço publico.

A pergunta que me coloquei sempre que ouvi as tentativas de limpar o Mário Machado aqui em tribunal – que é seguramente a pergunta que o comum dos mortais que conhece os seus desmandos se coloca quando se depara com a figura dele – é esta: como se pode qualificar alguém que defende a “morte de comunistas, pretos, paneleiros e mouros?” 

A resposta não precisa em nada de ser evidenciada, pois quem defende como o Mário Machado faz a morte de pessoas apenas pelas suas características biológicas ou pelas suas orientações sexuais e/ou filiações políticas, remete para o Hilter, o ídolo do Machado que não terá matado diretamente as milhões de pessoas que foram mortas pelo nazismo, mas foi e continuará sempre a ser o principal responsável pela morte dos milhões de judeus que foram chacinados pelo regime nazi. Mais uma vez, tal como disse na primeira audiência e volto a repetir, Hitler não deu um único tiro na cabeça do meu tio-avô, Mamadou Hadi Ba, que os nazis cunharam como o “terrorista negro”, mas Hitler é o principal responsável da sua morte, como ele é o principal responsável pela morte de todas as vítimas do nazismo. 

E mais uma vez, para o caso vertente, volto de novo a trazer ao baile o acórdão do supremo tribunal que disse: “[…] (ocorreu um) fenómeno associativo: quer ao nível da idealização e preparação do crime quer ao nível da sua execução material, as vontades dos comparticipantes unem-se na prossecução do fim comum, da operação conjunta. A ação de cada comparticipante perde a sua individualidade própria e pertence não só ao seu autor, mas a todos os co-autores. A ação de cada co-autor é causal do crime, ainda que em concreto não se mostrem com nitidez todos os seus contornos. Cada co-autor é responsável pela totalidade do evento, pois sem a ação de cada um o evento não teria sobrevindo. Muitas vezes a simples presença de um agente no local do crime é suficiente para convencer outrem a praticá-lo.”

Portanto, tal como Hitler será sempre o principal responsável pelas mortes dos judeus assassinados pelo nazismo, Mário Machado será sempre uma das principais figuras do assassinato de Alcindo por ter participado na elaboração e execução do plano de caça ao preto em que Alcindo Monteiro foi assassinado. 

Se o cumprimento da pena é uma forma de pagar pela culpa dos atos cometidos, isso não anulará nunca a responsabilidade pelo crime. A organização da sociedade e o governo das relações sociais permitem que o crime possa ser comutado pela pena como castigo, mas nunca o cumprimento da pena apagará o facto que consubstanciou o crime em si. Alguém que matou não deixa de ser quem matou por ter cumprido uma pena. É certo que à luz do direito se pode até dizer que Mário Machado e o seu bando pagaram pelos crimes que cometeram através do cumprimento de penas, mas nunca deixarão de ser responsáveis pelos seus crimes. A culpa de um ato pode convencionalmente prescrever, mas a responsabilidade do mesmo continuará sempre vinculado a quem o praticou ou o motivou. Mário Machado será sempre responsável por todos os atos em que esteve direta ou indiretamente envolvido, isso independentemente de ter judicialmente pago pelos seus crimes. Porque um crime pode prescrever mas uma responsabilidade nunca.

De modo que, seja com Mário Machado ou com qualquer outro responsável pela violência racial, sempre que tiver de apontar a responsabilidade da morte do Alcindo Monteiro e de qualquer outra vítima de violência racial, fá-lo-ei sem hesitar, nomeando taxativamente quem a endossou ou endossa.  

Nesse sentido, à armadilhada pergunta de saber se toda e qualquer pessoa tem direito à honra, a minha resposta é obviamente inequívoca e é não. Quem atenta à dignidade humana não constrói a sua própria honra. Pois não tenho dúvida alguma que não se pode gozar de honradez nenhuma pelo exercício da violência. Quem deliberadamente mata ou cuja ação ou ideias levam propositadamente à morte não tem honra nenhuma a defender ou a preservar e as instituições, nomeadamente, o sistema judicial não servir para apagar a memoria dos crimes contra a democracia que é a violência racial. A honra não é nenhum atributo genético, é um compromisso ético. Quem não o tem e nada faz para o ter, não merece nem pode ter honra nenhuma. 

O que mais me levou a pedir a palavra de novo é a consternação que sinto perante a postura do Ministério Público, que, representando o interesse geral, aqui se empenhou em defender um interesse particular, por essa via prejudicando um projeto de sociedade que defenda a dignidade humana. Ora, entre a honra que Mário Machado não tem e a obrigação de apontar a sua responsabilidade numa tragedia que não honrou a nossa democracia nem qualquer ideia de humanidade, a escolha é simples: nunca deixar de apontar-lhe esta responsabilidade. Entre os vários bens jurídicos a preservar neste processo, o compromisso do Estado deve pautar-se pela preservação e respeito da memoria das vítimas da violência racial em detrimento de estratégias políticas de legitimação de um fascista neonazi, autor moral de assassinato. 

É doloroso ver a aceitação de um processo de manipulação política da extrema-direita, cuja existência em si é uma afronta à nossa ordem constitucional. 

Por todas as vítimas mortais e aquelas que estão vivas, mas continuam a lutar com as sequelas daquela trágica noite de 10 de junho de 1995 e ainda pelas vítimas atuais do racismo quotidiano, não podemos fugir à responsabilidade de nomear os seus carrascos, custe o que custar. É por isso que entendo que este processo não é entre mim e um criminoso neonazi, mas sim, é um processo do sistema de justiça consigo próprio, que se deve confrontar com a contradição de defender alguém que quer destruir a própria democracia ao serviço da qual está a justiça. 

Mamadou Ba – 20/09/2023

Pitch me! – a convocatória para argumentistas emergentes lançada pela Academia Portuguesa de Cinema com a Netflix

CANDIDATURAS ABERTAS DE 31 DE JULHO a 07 DE SETEMBRO DE 2023

A Academia Portuguesa de Cinema e a Netflix anunciam a abertura da convocatória PITCH ME!, destinada a descobrir o trabalho de argumentistas emergentes, através de um programa de desenvolvimento de escrita no formato de residências, e que visa oferecer aos autores dos projetos selecionados uma oportunidade de colaborar e desenvolver as suas ideias, orientados por uma equipa de profissionais – argumentistas, mentores, script doctors, etc.

Depois da sua primeira edição, em 2019, no âmbito do “A Quatro Mãos” a iniciativa “Pitch Me!” regressa, desta vez focada na diversidade e inclusão de autores e narrativas de segmentos da população em risco de exclusão social, sub-representados no cinema e no audiovisual, tais como: pessoas com diversidade étnica, cultural, sexual, de género, diversidade funcional ou deficiência, pessoas de contexto socioeconómico desfavorecido.

A iniciativa pretende selecionar autores emergentes que poderão desenvolver projetos através de um programa de duas residências, uma no início do programa e outra no final. Entre as duas residências, e ao longo de 4 meses, haverá um conjunto de sessões de mentoria com profissionais do setor (nomeadamente, argumentistas).

O programa culminará num evento presencial com um pitch dos projetos desenvolvidos perante um grupo de profissionais representativos da indústria cinematográfica e audiovisual portuguesa.

O júri responsável pela avaliação de projetos é composto pelo poeta e dramaturgo André Tecedeiro, o realizador Ary Zara, a atriz, produtora e argumentista Ciomara Morais, a argumentista e editora Marta Lança e a jornalista e escritora Paula Cardoso.

Saiba mais e consulte o regulamento em: www.academiadecinema.pt/pitch-me-2023/

SOS RACISMO Condena Atos de Violência e Abuso Policial em Incidente em Cedofeita

O Movimento SOS RACISMO expressa veemente indignação diante dos recentes incidentes ocorridos em Cedofeita, Porto, que resultaram em atos de violência e abuso policial.

No dia 15 de agosto, o SOS RACISMO tomou conhecimento de um incidente através de uma publicação nas redes sociais de Orquídea Oliveira, que descreve um episódio perturbador envolvendo um cidadão racializado e sem abrigo num supermercado local (parte da cadeia Pingo Doce). O incidente, que deveria ter sido resolvido de forma pacífica e digna, acabou em violência física, com segurança da loja e funcionários imobilizando o indivíduo em questão.

De acordo com relatos de testemunhas, após a intervenção dos funcionários da loja, um contingente da Polícia foi chamado ao local, culminando em mais violência, incluindo agressões físicas a pessoas envolvidas na tentativa de impedir ações excessivas por parte do segurança. Entre as testemunhas, destaca-se Inês Rodrigues que fora agredida após intervir em defesa da irmã (detida por se insurgir contra o modo como a situação estava a ser tratada) e da vítima inicial. Esta circunstância é um exemplo alarmante do abuso de poder e violência policial que ainda persistem em nossa sociedade.

Além disso, no dia 16 de agosto, Inês Rodrigues reportou ter apresentado uma queixa contra a agressão policial na esquadra, onde relata ter sido alvo de chacota por parte dos agentes presentes. A falta de respeito e sensibilidade demonstrada pelas autoridades apenas reforça a urgência de medidas de reforma e de formação no seio policial.

O SOS RACISMO condena categoricamente qualquer forma de violência, discriminação racial e abuso de poder, seja por parte de seguranças privados ou agentes policiais. É inadmissível que indivíduos sejam submetidos a tratamentos humilhantes e desumanos, simplesmente pela sua aparência ou origem étnica.

Reforçamos nossa solidariedade com as vítimas destes atos e expressamos nosso apoio incondicional àqueles que ousam lutar contra o racismo e a injustiça. Exigimos uma investigação transparente e imparcial deste incidente, bem como uma reavaliação profunda das práticas de segurança e das abordagens policiais para garantir que esses incidentes não se repetem.

O SOS RACISMO continuará a trabalhar incansavelmente para defender os Direitos Humanos, combater a discriminação racial e contribuir para uma sociedade mais justa e inclusiva e quer desta forma solidarizar-se com todos aqueles que deram a cara neste caso.

18 de agosto de 2023

O ensurdecedor silêncio sobre a violência policial

De acordo com a queixa que foi remetida ao SOS Racismo, Rubens Gabriel  Prates, cidadão brasileiro, negro, a viver em Portugal, foi barbaramente agredido por elementos da PSP no passado dia 17 de novembro de 2022, tendo-nos sido reportados os factos seguintes:

1 – No referido dia 17 de novembro de 2022, pelas 9h30 da manhã, Rubens Prates encontrava-se na rua do Poço de Borratem, em Lisboa, aguardando a realização de uma entrevista de emprego, quando foi abordado por cerca de 6 agentes da PSP.

2 – Sem aviso e sem qualquer justificação, os referidos agentes agrediram violentamente o jovem Rubens, com pontapés e murros, e levaram-no para a esquadra situada na Rua da Palma.

3 – Dentro da esquadra, as agressões multiplicaram-se, ao som de várias injúrias: 

– “Não olhes para mim, preto de merda”;

– “Estou aqui para acabar com a tua raça. Ouviste, preto de merda?”;

– “Eu queria ir para o Brasil para limpar a tua raça, limpar gajos como tu, pretos de merda como tu que existem lá”;

– Imagina se um preto de merda violasse agora a puta da tua mãe”;

4 – Durante todo este período, os agentes foram acusando Rubens de tráfico de droga – facto que não correspondia à verdade.

5 – Na esquadra, Ruben foi levado para a casa-de-banho, tendo-lhe sido ordenado que se despisse.

6 – Já com Rubens completamente nu, os agentes obrigaram-no a ler vários textos que lhe apresentaram num telemóvel, para o humilhar.

7 – As agressões continuaram, desta vez com recurso a cassetetes, tendo provocado lesões graves em Rubens.

8 – Rubens viveu cerca de 4h de terror na esquadra: humilhado, torturado, bárbara e covardemente agredido e alvo de insultos racistas.

9 – Depois deste período, os agentes decidiram efetuar uma visita a casa do Rubens. Já em casa deste, um dos agentes, encontrando umas luvas de boxe, vestiu-as e agrediu Rubens com vários socos.

10 – De regresso à esquadra, e perante as feridas evidenciadas por Ruben, um dos agentes afirmou o seguinte: “Sabe que essas marcas foram todas que caíste na rua, se disseres no Tribunal quem é que fez isso cuidado que eu sei onde a tua mãe trabalha, onde a tua mãe mora e onde a tua namorada estuda”.

11 – Nesse dia, Rubens seria transportado para o hospital, com graves lesões no corpo, tendo sido necessária a utilização de uma cadeira de rodas, pelo facto de não se conseguir levantar e andar.

12 – No dia 27 de novembro de 2022, entre as 20h e as 20h30 e quando Rubens regressava a sua casa, deparou-se com um dos agentes que o havia agredido, que ali se encontrava, sem farda.

13 – Ao ver Rubens, o agente telefonou para outros colegas, chamando-os ao local; minutos depois, chegaram mais dois agentes da PSP, um dos quais também tinha participado nas agressões do dia 19 de novembro.

14 – Rubens foi então revistado, forçado a despir-se na via pública e intimidado pelos agentes, que lhe fizeram várias perguntas sobre as queixas que o mesmo havia apresentado em Tribunal sobre as agressões a que fora sujeito.

15 – No dia 2 de dezembro de 2022, pelas 10h40, Rubens caminhava na Calçada do Combro, quando uma viatura da PSP parou à sua frente e um dos agentes o questionou: “Tu és o Ruben? Tu é que és o Ruben? Anda ali falar!”.

16 – Rubens foi então levado para um beco na Travessa da Condessa do Rio, e o referido agente, exibindo uma foto sua, perguntou se ele não era “o puto da foto”. Tendo confirmado que a foto era de Ruben, os agentes levaram-no de novo para a esquadra da PSP no Rato, sem qualquer justificação, onde permaneceu até às 12h.

17 – Agressões, tortura, abuso de autoridade, injúrias, discriminação racial, um rol extenso de violência perpetrada por agentes da PSP, inadmissível num Estado de Direito.

18 – Até à presente data, estes factos foram apenas relatados por um único órgão de comunicação social, o Setenta e Quatro (cfr. www. setentaequatro.pt/enfoque/ve-la-nao-mates-o-miudo-jovem-acusa-agentes-da-psp-de-o-terem-torturado-na-esquadra).

Há um silencio ensurdecedor quanto a este e muitos outros casos de violência policial sobre sujeitos racializados. Os factos são demasiados graves e deveriam motivar um interesse distinto por parte da comunicação social e de todos e cada um de nós.

Portugal tem já um histórico vergonhoso quanto a casos de violência policial, sendo já tempo de reverter esta página de violência e de horror.

O SOS Racismo condena veemente estes atos, exortando as entidades competentes – incluindo o Ministério da Administração Interna – a pronunciarem-se sobre esta situação e a instaurarem os processos de inquérito para apuramento da verdade e punição dos responsáveis.

O SOS Racismo está solidário com o Rubens e toda a sua família, estando disponível para tudo o que for necessário, para que se faça Justiça! 

Apelamos ainda a todas as vítimas de violência policial que apresentem queixas junto do Ministério Público e que divulguem todos os atos de violência a que foram sujeitas – não estão, nem vão ficar sozinhas! 

21 de junho de 2023

SOS Racismo

Migrar – um direito universal que tem de ser efectivamente garantido

Em que medida se cruzam os acontecimentos da suspeita de tráfico de pessoas, incluindo menores, associados à Bsports do naufrágio que dia 14 de junho ocorreu na costa grega? Em bem mais do que se poderia desejar.

As motivações daqueles que decidem migrar são diversas, muitas de causas de efectiva sobrevivência, de necessidade de segurança e quase sempre de anseio por uma vida melhor.  

A investigação em curso à academia de futebol Bsports, localizada em Riba D’Ave, Vila Nova de Famalicão, prolonga-se já desde 2020 sobre a suspeita de tráfico de menores. Estes, aliciados pelo sucesso no futebol pagam para vir para Portugal com a ambição de conseguir algum tipo de contrato num clube. Os que não são bem-sucedidos, terão ficado frequentemente abandonados, sem meios de subsistência, privados do seu passaporte e intimados a pagar a continuidade da sua estadia. Este processo parece estar de tal modo intrincado com o sistema do futebol profissional que o próprio presidente da Assembleia Geral da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, Mário Costa, é uma das figuras centrais do processo. É pois, preocupante a violação dos mais básicos direitos destes jovens migrantes, é também preocupante o carácter criminoso da rede, bem como, a dificuldade e a morosidade revelada pelas autoridades em investigar este processo, dar suporte às vítimas e condenar os responsáveis.

Em simultâneo, no Mediterrâneo, no passado dia 14 de junho, ocorreu mais um naufrágio. São já incontáveis os naufrágios ocorridos nestas circunstâncias. Mas não se pode deixar de contar o sucedido. Numa embarcação que se estima que transportasse mais de 750 pessoas, apenas 104 foram resgatadas, 78 foram retiradas do mar já sem vida, e centenas de pessoas permanecem desaparecidas. Sabe-se que muitas delas serão crianças. E sabe-se que o auxílio a estes migrantes que rumavam à Europa não existiu de facto. Nem as autoridades gregas, nem as autoridades italianas assumem o erro de não ter sido prestado o apoio devido à embarcação em tempo útil. Alega-se que os gregos terão sido os primeiros a oferecer ajuda ao início da tarde de terça feira, que terá sido recusada porque os responsáveis da embarcação queriam continuar a navegar até à costa italiana. Segundo a ativista Nawal Soufi, que manteve o contato com pessoas a bordo, depois da primeira aproximação das autoridades gregas, mais nenhum apoio foi oferecido ou prestado, quando o barco ficou à deriva durante horas. Um avião da Frontex terá sobrevoado a zona onde a embarcação se encontrava e nenhum apoio foi ativado. Mais grave ainda, suspeita-se que o reboque mal-executado do navio já em processo de naufrágio teria precipitado o afundamento e aumentado o número de vítimas.  As denúncias são feitas por várias organizações, entre as quais, “Alarm Phone” e “Médicos Sem Fronteiras”.

Só no primeiro trimestre de 2023 morreram cerca de 441 migrantes no Mediterrâneo, o maior número registado desde 2017 e o atraso no resgate foi responsável por cerca dum terço destas mortes. O empobrecimento sistémico dos povos do Sul, fruto do modelo económico predatório do sistema capitalista vigente que fomenta guerras e instabilidades várias para o controlo dos recursos naturais, acelerando alterações climáticas e a subsequente crise ambiental, é uma das principais causas do êxodo migratório nestas regiões. Às guerras larvares fomentadas pelo controle geopolítico do mundo e dos seus recursos, como acontece no Médio-oriente, com as guerras da Síria, do Afeganistão, do Iraque e do Iémen, no Mediterrâneo, com as guerras na Líbia bem como no continente africano, com os conflitos no Sahel, nas regiões dos Grandes Lagos, acrescem ainda a instauração de regimes opressivos, alimentados e financiados pelo capitalismo financeiro mundial. Nenhuma verdadeira alternativa é proporcionada. E convém lembrar que a rota migratória por terra de acesso à Europa, mais segura, foi há muito tempo tornada inviável pela União Europeia, com crescentes cercas nas suas fronteiras e sistemas de bloqueio de rotas mesmo além das suas fronteiras, em países como a Turquia e Líbia e não só. Essencialmente, a União Europeia comprometeu qualquer possibilidade de uma imigração segura para a Europa ao estabelecer uma política de mobilidade seletiva, através de um regime de vistos só acessível a alguns e, ao mesmo tempo, faz da vigilância e de repressão um modo de gestão dos fluxos migratórios.

O Movimento SOS Racismo, vem, mais uma vez, denunciar a hipocrisia das políticas de imigração e o desrespeito pelos mais elementares direitos humanos das populações migrantes. Em Portugal como na União Europeia, urge ter verdadeiras medidas de combate ao tráfico de pessoas que sancionem efetivamente os criminosos e protejam as vítimas, criando condições dignas e seguras para aqueles que queiram migrar.     

18 de junho de 2023

SOS Racismo

Nota de Pesar – Eduarda Dionísio

Foi com enorme sentimento de perda que recebemos a notícia da morte da Eduarda Dionísio, no passado dia 22 de Maio. Escritora, pedagoga, animadora cultural, dramaturga, ensaísta, jornalista, sindicalista, Eduarda Dionísio fez parte de uma geração de lutadoras comprometidas com as causas da Liberdade, antes e depois do 25 de Abril de 1974.

Em 1993, realizou um distinto estudo sobre a cultura em Portugal, com o título “Títulos, Ações, Obrigações”, centrada na compreensão da fragilidade humana e do olhar crítico perante a vida e o mundo. Ativista incansável, colaborou com O Bando e com o Teatro da Cornucópia, nomeadamente com uma importante colagem de textos de Raul Brandão, ‘Primavera Negra’.

Foi professora do ensino secundário e teve um intenso envolvimento na luta política e social, sobretudo nas décadas de 1970 e 1980. Participou em exposições coletivas de artes plásticas, escreveu diversas antologias de textos literários portugueses e participou ativamente na dinamização teatral. Assinou com Antonino Solmer, a peça “Dou-Che-Lo Vivo, Dou-Che-Lo Morto”. Traduziu Shakespeare, Schnitzler, Brecht, Müller e Fosse.

Desde da fundação do SOS Racismo que colaborou com a nossa associação e o ponto alto foi a denúncia sobre o significado da Expo 98, com a organização conjunta de um seminário InternacionaL “Em tempo de Expo, há outras histórias para contar” e com a edição em livro das atas desse seminário,

Eduarda Dionísio dirigia a Casa da Achada, em Lisboa (que recentemente recebeu o debate sobre o 21 de Março em que esteve presente) onde se encontra o espólio de

seu pai.

O SOS Racismo envia aos familiares e amigos um forte e fraterno abraço e à Casa da Achada, um sentido abraço amigo.